terça-feira, 29 de setembro de 2020

Os sapatos


    Desciam os sapatos pelas ruas da cidadela. Caminhavam apressados e com graça. Brilhantes, de couro bem tratado e certamente de fino dono, pois sua marca europeia não lhe deixava mentir. Faziam contatos laterais um com outro, paravam vez ou outra para que suas pernas pudessem descansar ou encontrar outros sapatos que pudessem se vangloriar. Afinal, nenhum sapato neste fim de mundo seria tão galante quanto ele.

    Atravessaram toda a praça da cidade, o chão de paralelepípedo brilhava quando pisados por eles, pelo menos era o que pensavam. Um banco comprido e largo foi avistado, suas pernas pararam. Um pequenino sapatinho desbotado surgiu, muito ao longe. Eram sapatos femininos, mas não possuíam tanta graça e cores como os que estavam acostumados a encontrar. Sentiram certa estranheza. O dois desengonçados caminhavam apressadamente ao seu encontro. Uma leve sensação de embrulho surgiu, não que sapatos tenham estômago, mas o sentimento foi real, é o que importa!

    Quando os pequenos sapatinhos pararam tímidos e um tanto vexados à sua frente. Os masculinos sorriram, porém não perceptivelmente, deram daqueles sorrisos para dentro não possíveis de observar a olhos nu. Foram poucos minutos ali, parados a observar e comparar de forma minuciosa e profunda, aqueles sapatinhos um tanto sem cor, amarelados, gastos e pouco interessantes. Sapatinhos que hora trepidavam os saltinhos, hora as pontas, pareciam nervosos. Saltos baixíssimos, nada parecidos com os saltos esguios e altíssimos das francesas e os brilhos das polacas que estavam acostumados. E as plumas? Ahhh, as plumas! Bastava um centímetro de aproximação para que aquelas pequenas esfregassem-se nas pontas de seu lustroso couro e ali ficassem. Frente a frente, às vezes, lado a lado, por uma noite ou duas … tudo dependia das vontades de suas pernas. Sapatos felizes!

    Uma pergunta era saliente naquele encontro. O que queriam suas pernas com aquelas dos dois pequenos e velhos sapatinhos?

    Conversa finda. Aos sapatos servem a missão de voltar à casa. Entrar pelos grandes portões luxuosos de sua mansão. Recostar-se em seu luxuoso Canapé. Enquanto seu dono, Fernando um tanto embriagado com uísque caro, sorri e observa seu patrimônio que herdaria da uns anos. E dava-se ao direito de esquecer o compromisso que firmara há alguns minutos atrás, com uma moça um tanto mais jovem que ele de sapatinhos empoeirados. Não por maldade ou falta de querer. Talvez, por culpa da bebida, da falta do que fazer ou da própria consciência que o arrebatou e tragou seu corpo ao fundo do canapé em sono profundo e sem hora para acordar, talvez …

    Jamais saberemos, sapatos não costumam prender-se tanto a detalhes acima de suas pernas.


Rose Rabelo

Autora

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